“O que é então o tempo? Se
ninguém me pergunta, eu sei; se quero explicar a quem pergunta, não sei.”
Santo Agostinho,
Confissões
Cristiano Capovilla* e Fábio Palácio**
O raciocínio em epígrafe expõe a
dificuldade da razão ao tratar de um tema caro a todos nós. Vivemos no tempo,
mas como conceituá-lo? Para os teólogos, nosso tempo na terra é o fundamento da
condenação ou da salvação, quando do julgamento final. Para os filósofos
modernos, o tempo virou história, medida das transformações sociais e políticas.
Em que pesem as diferenças, ambos concordam em um ponto: o tempo é o critério
de avaliação de nossas práticas.
Surge aqui uma vez mais, e sempre, o
padre Antônio Vieira. Subvertendo compreensões comuns, maceradas por sua retórica
dialética, o Imperador do idioma afirma ser o tempo fugaz e irreversível, algo
que “não tem restituição alguma”. O uso diligente do tempo, com a prática das
boas obras, é o critério de salvação da alma. Por isso, “o desprezo do tempo
pelos omissos e negligentes é o maior dos pecados”.
No entanto, as omissões têm diferentes significados, conforme se trate
do governante ou do cidadão comum. A negligência do governante é a pior de
todas, de vez que este, “por uma omissão, está cometendo maiores danos, maiores
estragos, maiores destruições, que todos os malfeitores do mundo em muitos
anos”. Será, pois, pelas omissões e negligências que serão julgados os
governantes.
Essas reflexões vêm à mente quando o
ex-presidente José Sarney, em texto veiculado no último domingo (2), dialoga
com argumentos nossos de artigo anterior. Ele adverte que sempre teve “os olhos
voltados para a frente, tentando desnudar o futuro”, e enumera realizações nas
áreas científica e tecnológica, desfiando “síncrotons”, “satélites”, “fibras
óticas” e “semicondutores”.
A criação, em 1985, do Ministério da Ciência e Tecnologia foi, de fato, um dos
melhores frutos do processo de redemocratização. O órgão prestou incontáveis
serviços ao desenvolvimento nacional. O mérito não é apenas de Sarney. Cabe recordar
o papel de Renato Archer, primeiro ministro de Estado da Ciência e Tecnologia.
Igualmente memoráveis são as figuras de Tancredo Neves – candidato das forças
progressistas para derrotar a ditadura em pleno colégio eleitoral – e Ulysses Guimarães,
democrata de estatura que faz falta nestes tempos bicudos, em que o centro
democrático apequena-se e retrocedemos até mesmo nas conquistas da Constituição
de 1988.
Hoje, os
avanços da política científica e tecnológica são destruídos por restrições
orçamentárias que se pretendem manter por vinte anos! A própria institucionalidade da área é desfigurada,
com o desmanche do Ministério da Ciência, Tecnologia e Inovação. O país
coloca-se na contramão das principais nações ao sacrificar uma área essencial
ao enfrentamento da crise econômica. Contra essa tragédia poderia erguer-se,
com o prestígio de que dispõe junto ao atual governo, o ex-presidente Sarney.
Não seria um pecado omitir-se perante a destruição daquilo que, afinal, reclama
ser sua própria herança?
Seja como
for, o fato é que, por importante que seja para o desenvolvimento e a autonomia
nacional, a ciência e tecnologia não pode ser tomada como componente único de
um projeto de modernização. Modernidade
é algo mais amplo, envolve valores civilizatórios como o combate às
desigualdades e à pobreza, a construção do bem-estar social, a valorização do
trabalho, a promoção da democracia. Confundir
modernidade com satélites é cultivar uma visão parcial e caricata do futuro.
Este não é o futuro como as atuais gerações o concebem. Trata-se, antes, de um futuro
do pretérito.
No mesmo
sentido, modernidade não é apenas respeito à propriedade, mas também
combate à concentração dessa mesma propriedade nas mãos de poucos. Num estado agrícola como o Maranhão não é
possível, realmente, ignorar a função social da propriedade. Recordem-se, a
propósito, os efeitos deletérios da lei 2.979/69, a Lei Sarney
de Terras. Trata-se de um dos maiores pecados cometidos contra camponeses e
pequenos produtores. Talvez
agora eles tenham a chance de ser ouvidos, porém não mais pela “Polícia”, mas pelas
instituições mediadoras do Estado.
Quando falamos
em democracia, há sempre a tentação de contrastá-la com o “terror” na Rússia ou
na França. Ora, para falar de golpes e ditaduras não é necessário recorrer a
terras e tempos distantes. Podemos ficar por aqui e resgatar nossa história
recente. No momento em que uma presidenta eleita sofre impeachment sem a
comprovação cabal de crime de responsabilidade, cabe perguntar se as chagas do
autoritarismo, escancaradas com a ditadura de 1964, encontram-se realmente
superadas. Até que ponto avançamos na conquista de uma democracia autêntica,
que assegure direitos e valorize o povo trabalhador?
O Maranhão de
hoje, contrastando com o de outrora, avança nesse rumo. E é assim que, seguindo os passos do padre
Vieira, podemos compreender que os tempos verbais modificam-se para
possibilitar a compreensão de nossas ações. O que aparece como “fizemos”,
“trouxe” e “modernizei” transmuta-se em fazíamos, trazia e modernizava. Essa
simples mudança verbal é indicativa de um passado que se queria pleno, perfeito,
mas profanou-se pelo “pecado” das improvidências... E surge, agora, como pretérito imperfeito.
*
Professor de Filosofia da UFMA e diretor da Fundação Maurício Grabois –
Maranhão.
**
Professor do Depto. de Comunicação Social da UFMA e presidente da Fundação
Maurício Grabois – Maranhão.